Andreia Calçada
Psicóloga formada pela UERJ, Psicoterapeuta, Ludoterapeuta,Pós Graduada pela UERJ em Psicopedagogia Clínica, Especialista em Psicologia clínica e Psicopedagogia pelo CRP-05, Especialização em Neuropsicologia pelo IPUB e em Hipnose clínica, com Experiência em Equipe Psiquiátrica, Avaliação Psicológica e Psicologia Jurídica
Autora do livro “Falsas Acusações de Abuso Sexual – O Outro Lado da História”
Co-autora do livro “Guarda Compartilhada- Aspectos Psicológicos e Jurídicos”
Autora do livro “Falsas Acusações de Abuso Sexual e a Implantação de Falsas Memórias”
CRP-05/18785
O uso do abuso sexual – o outro lado da história
( Artigo introdutório)
O artigo em pauta é introdutório de um estudo mais amplo sobre o tema. Seu objetivo principal é ser um alerta aos profissionais que atuam em casos ligados à justiça, principalmente aqueles que envolvam separações litigiosas em que pesem acusações de abuso sexual. É direcionado, especialmente aos profissionais nomeados pelas varas de família para realizar perícias judiciais, ou assistência técnica a advogados, como médicos , psicólogos e assistentes sociais.
Durante longo período atuamos como profissionais integrantes de uma equipe interdisciplinar de saúde mental. Em meio a uma grande diversidade de casos de tratamento psiquiátrico, psicológico, familiar e social, cuja abordagem ia desde o processo diagnóstico até a intervenção terapêutica e/ou medicamentosa; recebíamos também casos encaminhados por juizes ou advogados para realização de perícia psiquiátrica ou psicológica, dentre estes, casos de acusação de abuso sexual.
Nossa apreensão e curiosidade foram aguçadas após um levantamento estatístico realizado em nosso consultório, que apontou para um aumento progressivo, em curto período de tempo, do número de casos de acusação de abuso sexual infantil entre os casos de separação judicial. Casos estes, em que pairavam dúvidas quanto à veracidade das acusações feitas. Nossa base para este estudo está referenciada em vinte casos recebidos e a avaliados, dentre os quais em seis deles ( após terem sido intensamente avaliados pela equipe ), ficaram evidentes a integridade emocional e social das pessoas acusadas. Na avaliação foi ainda incluída o uso de um perfil de abusadores sexuais, o que nos permitiu construir um parâmetro frente a pessoas falsamente acusadas. Outro dado importante, que devemos destacar e que nos serviu como alerta, foi o fato de que dificilmente a parte acusadora se disponibilizava a ser investigada.
No início de nossa pesquisa buscamos referências sobre o assunto não encontrando bibliografia nacional especializada nem estatísticas em instituições brasileiras responsáveis por este tipo de assistência. Tal suporte foi conseguido junto a publicações americanas que indicaram percentual de 33% de falsas acusações de abuso sexual, sobre o total de acusações de abuso sexual.
O trabalho em equipe, então uma equipe interdisciplinar, possibilitou uma visão mais ampla destes casos. Uma abordagem do cliente mais abrangente e unificada, ou seja, o ser humano com suas diversas facetas, tornou mais fácil viabilizar uma avaliação mais precisa do caso, da forma mais segura possível, possibilitando levantamento de hipóteses quanto ao uso indevido deste tipo de acusação.
Através da discussão destes casos em reuniões e do levantamento destas hipóteses, havia inicialmente um planejamento estratégico da avaliação, aonde a parte acusada, geralmente a parte encaminhada para avaliação, era submetida a entrevistas iniciais, avaliação sócio-familiar, psiquiátrica, psicológica ( abrangendo entrevistas e testagens ). Era ainda objetivo da equipe, quando possível, reunir as famílias em questão, com o objetivo de avaliar sua dinâmica, bem como, ouvir suas partes, argumentos, para poder juntar estes dados, aos obtidos nas outras etapas da avaliação. Vivenciamos algumas situações, com a presença da parte acusadora, onde foi possível observar o uso da criança como forma de disputa de poder para alcançar vantagens, fossem elas financeiras ou emocionais.
FATOS ALARMANTES
Já há algum tempo os casos onde ocorriam disputas familiares vinham nos chamando a atenção, tanto pela peculiaridade no agravamento dos sintomas, quanto ao fato de estarem se aproximando cada vez mais de um nível perigosamente patológico. Observamos uma troca de acusações por motivações as mais diversas, que se transformavam em “guerras perversas”, aonde a criança é a mais sacrificada, sendo usada como munição nesta guerra de adultos. A capacidade ainda limitada de se defender, a dependência financeira e emocional em relação aos pais e a restrita habilidade de avaliar e colocar-se à parte da disputa entre os pais, torna a criança alvo facilmente manipulável. Como sabemos que os acontecimentos vivenciados na infância são determinantes importantes de distúrbios de personalidade na idade adulta, nossa preocupação foi aguçada frente a gravidade da situação.
Um dos pontos que consideramos mais importantes e que gostaríamos de ressaltar frente aos casos estudados, foi a constatação das graves consequências deixadas. Como nos casos de comprovação de abuso sexual, os casos de falsas acusações geram na criança envolvida e no adulto falsamente acusado, marcas cruéis, similares às ocorridas em conseqüência de um abuso sexual real. Realizamos portanto um estudo comparativo com as consequências de um abuso sexual real, para fundamentar nossas observações. Listamos abaixo, alguns dos aspectos mais importantes:
Consequências para a criança-objeto de uma falsa acusação de abuso sexual
As vítimas de falsas acusações de abuso sexual, certamente correm riscos semelhantes às crianças que foram abusadas de fato, ou seja, estão sujeitas a apresentar algum tipo de patologia grave, nas esferas afetiva, psicológica e sexual .
Ao refletirmos sobre a dinâmica do conflito interno da criança que vivencia essa situação, pensamos sobre a relação triangular estabelecida (PAI-MÃE-FILHO). A sexualidade das crianças normalmente se estabelece numa relação edipiana. Os desejos que eclodem nesta relação, por si só já causam uma culpa na criança, pois ela está com a sexualidade aflorada. Não raro a menina ou menino fantasiam que os pais são seus “namorados” ou “namoradas”. Esta situação gera conflito, culpa e isto é usual acontecer. Há a culpa por saber que estaria “traindo sua mãe/pai”. Tomemos por exemplo edípico a menina. Há conflito pois para se tornar “namorada” do pai , deve passar do amor que sente pela mãe, para o ódio e rivalidade, podendo assim conquistar “seu amor” imaginário. Esta situação momentânea é passageira, não deixando seqüelas quando bem resolvidas.
No caso de uma falsa alegação de abuso sexual, o que era fantasia passa a ser realidade, exacerbando os sentimentos de culpa e traição. Além de sentir-se culpada por interferir na relação pai-mãe, sentir-se-á culpada também pela falsa acusação.
A fala permanente e repetitiva sobre a questão do abuso, ou seja, uma vivência constante desta situação, passa a fazer parte do psiquismo desta criança como um fantasma, passando a ser de conteúdos persecutórios. Reafirmamos portanto, que um caso de falsa acusação de abuso sexual, pode se configurar para a criança em um abuso sexual real, em função do imaginário infantil.
Ao mesmo tempo que a criança tenta se desfazer destas falsas acusações, negá-la significa trair o genitor acusador, com o qual tem, na maioria das vezes, uma relação de dependência.
Todo este emaranhado de sentimentos, pode causar uma lesão interna na criança-objeto, trazendo repercussões sérias na sua capacidade de se relacionar afetivamente no decorrer de seu desenvolvimento global. Vale ressaltar aí as relações de confiança, tão importantes para um desenvolvimento saudável, já descritos anteriormente.
• Alterações na área afetiva: depressão infantil, angústia, sentimento de culpa, rigidez e inflexibilidade diante das situações cotidianas, insegurança, medos e fobias, choro compulsivo sem motivo aparente.
• Alterações na área interpessoal: dificuldade em confiar no outro, dificuldade em fazer amizades, dificuldade em estabelecer relações, principalmente com pessoas mais velhas, apego excessivo a figura “acusadora”.
• Alterações na área da sexualidade: não querer mostrar seu corpo, recusar tomar banho com colegas, recusa anormal a exames médicos e ginecológicos, vergonha em trocar de roupa na frente de outras pessoas.
Esses dados foram observados e colhidos na fase de avaliação em crianças. Não temos por enquanto, dados que digam respeito a alterações a médio e a longo prazo. Vemos então que assim como no abuso sexual real, a base estrutural de auto-estima, autoconfiança e confiança no outro ficam bastante abaladas, sendo portanto, terreno fértil para que patologias graves possam se instalar.
Consequências para as pessoas que foram injustamente acusadas de abuso sexual
A falsa acusação de abuso sexual mexe em sentimentos profundos, na pessoa que está sendo acusada, gerando grande sentimento de raiva , impotência e insegurança entre outros. Trata-se de uma acusação tão subjetiva, que não pode ser mensurado e consequentemente contestado objetivamente.
Desestruturação social: perda da estrutura básica de confiança social , ou seja, passa a ser visto como um “monstro comedor de criancinhas”, indigno de confiança, perda de amizades, situações de constrangimento em ambientes de trabalho e lazer, perda de privacidade, exposição a insultos , levando-o ao retraimento social, por vezes, tornando-se necessária a mudança de cidade, ameaça de perda da liberdade por encarceramento.
Desestruturação emocional e comportamental: depressão, insegurança, baixa auto-estima, raiva, ódio, sentimento de impotência, angústia, agressividade, fragilização egóica, perda de seu próprio referencial de saúde mental, pensamentos suicidas, somatizações, alterações no apetite e no sono, atitudes impulsivas agressivas, descontrole emocional, entre outros.
Desestruturação profissional e financeira: falta de atenção e concentração para o trabalho, baixo rendimento em função da baixa auto-estima, possibilidade da perda do emprego, perdas financeiras com gastos devido às custas judiciais com os processos, etc.
Desestruturação familiar: perda do núcleo básico familiar, afastamento do filho que passa a teme-lo e acusá-lo, perda do direito à visitações da criança, interferência negativa no atual e futuros relacionamentos com conjuge ou filhos.
CONCLUSÕES:
É fato que o abuso sexual existe sem distinção de idade, raça ou classe social, sendo cometido principalmente por familiares ou pessoas próximas ao menor. Durante a nossa pesquisa e desenvolvimento deste trabalho, tivemos o cuidado de deixar claro que ele não tem o objetivo de proteger os reais abusadores. Ë importante ressaltar que o tema “Abuso sexual” mobiliza emocionalmente as pessoas envolvidas. Ao mesmo tempo que o assunto acima tratado é atrativo e mobilizador , é assustador pelo poder de abalar de forma profunda a estrutura emocional de uma pessoa.
Queremos alertar os profissionais envolvidos neste tipo de atuação, quanto à existência da possibilidade do uso da acusação de abuso sexual, como forma de vingança e revanchismo na disputa de poder entre as pessoas envolvidas. Surpreendeu-nos por diversa vezes, a leitura de laudos de acusação realizados por profissionais vinculados ou não a instituições, nos quais a falta de aprofundamento na investigação era evidente. O diagnóstico era firmado em poucas sessões pelos profissionais responsáveis, aonde apenas a parte acusadora era ouvida, sendo os demais familiares alijados da avaliação. Estes documentos foram transformados em processos judiciais nas varas de família, para surpresa da parte acusada. Em suma, a vítima é colocada numa situação devastadora, sentindo-se oprimida e impotente diante de seu próprio mundo.
O processo de avaliação nestes casos portanto, não pode ser negligenciado. Todos os casos de acusação de abuso sexual devem ser investigados levando-se em conta duas alternativas: sua veracidade ou sua falsidade. Cabe aos profissionais saber manter distanciamento e neutralidade necessários na apuração dos dados. Uma boa forma de se alcançar uma postura mais isenta e segura seria o trabalho em equipe, pela visão multifacetada dos clientes em questão.
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* Andreia Calçada e colaboradores 2002 – revista do Conselho Regional de psicologia - 05
7–Bibliografia:
7.1 - Referências bibliográficas
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